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Mãe Stella

Só estive junto à Mãe Stella uma vez, em um evento onde ela era a palestrante, no começo dos anos 2000. Seu olhar forte e penetrante nos atravessava e seu sorriso iluminava todos ao redor. Naquela Presença, tudo era pura magia e encantamento. Às vezes, a vida só nos concede um único encontro. Trata-se de vivê-lo na sua singularidade, efêmera e indelével. E assim foi.

Anos depois, tive a oportunidade de visitar o Ilê AXè Opô Afonjá, onde a estátua de Xangô abençoa quem chega. Lembrei de Fatumbi, seu companheiro de iniciação. E, de novo, uma emoção tomou conta de mim ao reconhecer os fios invisíveis que nos unem a tudo e a todos.

Hoje comemoramos a vida e o legado de uma das maiores yalorixás que o Brasil já conheceu, Mãe Stella de Oxóssi, Odê Caiodê!

Nascida Maria Stella de Azevedo Santos, em 2 de maio de 1925, na nossa primeira capital, Salvador, foi escolhida para ser a quinta ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, um dos terreiros de candomblé mais tradicionais de Bahia e, tradicionalmente, conduzido de forma matriarcal. Desde pequena, teve contato com cultos e tradições do candomblé, fortemente cultivados por seus ancestrais, e foi iniciada na religião por Mãe Senhora, aos 14 anos de idade, para Oxóssi. Recebeu o orucó (nome sagrado) de Odê Caiodê, o qual significa “a caçadora que  traz alegria’ no idioma iorubá.

A alegria foi uma marca da sua personalidade, o que não a tornava menos aguerrida. Entre as batalhas que Mãe Stella travou, pode-se citar sua luta pela aceitação do culto do candomblé por parte da sociedade brasileira. Assumiu sua fé com o orgulho de quem sabe a quem serve e incentivou que outras pessoas também se posicionassem, firmemente, como filhos de orixá.

Outra contribuição notória foi o esclarecimento sobre os equívocos históricos do sincretismo religioso: argumentou e debateu, com outras ialorixás e babalaôs, que Orixás e santos não são a mesma coisa. Ainda que o sincretismo religioso tenha sido mobilizado como um recurso de sobrevivência pelo população de matriz africana, no período sombrio em que nossa sociedade escravizou pessoas, sua perpetuação já não faz mais sentido, sendo essencial que reconheçamos a força e a peculiaridade dos Orixás conforme sua própria cultura. Na década de 1970, redigiu um manifesto histórico em defesa do fim do sincretismo religioso no candomblé , denominado de ‘Santa Bárbara não é Iansã’, o qual foi assinado pelos principais pais e mães de santo da época.

Além de ser uma sacerdotisa do Candomblé, Mãe Stella era escritora, sendo a primeira Ialorixá brasileira a escrever sobre sua religião. Seus livros “Meu Tempo é Agora”, “O que as folhas cantam” e “Oxóssi – O Caçador de Alegrias” são repetidamente citados em muitas pesquisas. Viajou inúmeras vezes à África para aprofundar seus conhecimentos sobre a cultura iorubá, transformando o conteúdo oral em herança escrita e promovendo uma melhor compreensão dos cultos africanos. Em 1999, conseguiu o tombamento do Ilê Axé Opô Afonjá pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), uma conquista, até então, inédita.

Entre os reconhecimentos de destaque, Mãe Stella foi uma das principais lideranças internacionais na Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU), contra o racismo e a intolerância ocorrida em agosto de 2001. Em 2005, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia, tendo sido palestrante em Conferências Mundiais de Tradição dos Orixá e Cultura. Em 2013, foi eleita, por unanimidade, para compor a Academia de Letras da Bahia.

Além do trabalho intelectual e religioso, foi enfermeira e atuou na rede pública de saúde por mais de 30 anos. Morreu aos 93 anos, em dezembro de 2018, devido à insuficiência renal crônica associada à hipertensão arterial sistêmica.

Lembrando as palavras de Fatumbi (Pierre Verger), “dizem que é o orixá quem escolhe o filho, e não o contrário, mas ninguém sabe qual é o critério dessa escolha. Talvez se trate, simplesmente, de uma troca de necessidades. O filho precisa do Orixá para se tornar quem ele realmente é. O Orixá precisa do filho para que sua existência se torne real.”

À sua ousadia, presença e legado, nossa eterna gratidão e Asé!

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